quinta-feira, 4 de setembro de 2008

Achado não é roubado?

Um quadro do CQC (Custe o que custar, programa da Band exibido nas segundas-feiras às 23:00h), sobre a honestidade do brasileiro acabou gerando um debate jurídico animado entre amigos.
Na matéria, que visava avaliar a honestidade dos brasileiros e que pode ser encontrado no You Tube, os debochados do CQC deixavam um celular na rua e ficavam esperando alguém pegar. Depois, ligavam para a pessoa e pediam o aparelho de volta.Pois bem, uma senhora pegou o celular e, quando o repórter/comediante ligou, ela não atendeu. Depois, eles foram até ela e perguntaram se ela tinha achado o celular, o que ela negou. Mostraram a imagem em que ela pegava o aparelho e, mesmo assim, ela se recusou a devolver. A polícia teve que ser acionada.Vejam abaixo. É impressionante.
"Achado não é roubado, quem perdeu foi relaxado", diz o dito popular.Mas, afinal, qual a análise jurídica que pode ser feita do fato? Para começo de conversa, será verdade que achado não é roubado?Sobre o tema, achei um interessante artigo de Renato Braga Bicalho. Eis o que diz o autor, em vermelho:Muitos de nós já usamos ou ouvimos falar a expressão: achado não é roubado. Mas, essa simples expressão traz, na sua essência, vícios e erros jurídicos, além de tentar justificar um crime, não o de roubo, mas, sim, o de apropriação de coisa achada.Para ilustrar, eis o fato: um belo dia alguém pode achar um objeto de alheio, um livro por exemplo, e pensar que aquele dia foi de sorte, pois adquiriu um objeto que, possivelmente, lhe será útil, de relevado valor econômico e nem precisou pagar nada. Além do mais achado não é roubado.

Certo? Errado.O Código Civil, na norma do art. 1.233 e seguintes, frustra aquele que encontrar coisa de outrem, porque dela não poderá se apropriar, pois estaria contrariando a lei. O referido Código nos informa: aquele que achar coisa alheia deve devolvê-la ao dono ou ao legítimo possuidor.
Na falta desses, a coisa deve ser entregue à autoridade competente.
Eis o dispositivo:
Art. 1.233. Quem quer que ache coisa alheia perdida há de restituí-la ao dono ou legítimo possuidor. Parágrafo único. Não o conhecendo, o descobridor fará por encontrá-lo, e, se não o encontrar, entregará a coisa achada à autoridade competente.Isto não é novidade no direito civil brasileiro, porque o mesmo tema já era tratado no Código Civil de 1916, nos arts. 603 e seguintes.
Sendo assim, achar coisa e não devolver nunca foi aceito como lícito no direito contemporâneo pátrio.E para aqueles que se utilizam do desconhecimento como desculpa é só se reporta ao art. 3º da Lei de Introdução ao Código Civil: Ninguém se escusa de cumprir a lei, alegando que não a conhece.Desta forma, achar objeto alheio perdido e não conhecendo o proprietário, deverá entregar a autoridade judiciária ou policial competente. Essa, por sua vez, lavrará o Auto Arrecadação como o objetivo de individualizar a coisa e, após, encaminhará ao juízo competente, que mandará publicar edital para que o dono ou possuidor legítimo a reclame, conforme prevê o Código de Processo Civil, em seu art. 1.170.Mas nem tudo é motivo de tristeza para o "sortudo", que encontrou coisa alheia perdida.Após a divulgação do edital podem ocorrer duas situações distintas: a primeira, e menos provável, o proprietário da coisa aparecer. Nessa hipótese, deverá provar que é o dono da coisa. Levadas as provas até o conhecimento do Juiz, esse ouvirá o Ministério Público e a Fazenda Pública, e, convencido da titularidade mandará entregar a coisa ao descuidado proprietário.Há possibilidade, também, de recompensa àquele que achou a res (coisa) perdida. O valor da indenização não poderá ser inferior a 5% do valor do bem. Poderá este valor ser acrescido pelas perdas e danos causados pela conservação da coisa e, ainda, pelos gastos despendidos pelo descobridor, no esforço realizado para descobrir o real dono do bem encontrado.A segunda opção, e mais provável de acontecer, é o proprietário do objeto, após o prazo decadencial de 60 dias da publicação do edital, não reclamar da ausência do bem. Se ocorrer referida possibilidade, a coisa será avaliada e alienada em hasta pública ("leilão"). Caso aconteça a venda do bem, serão deduzidas as despesas, inclusive com a indenização daquele que achou o bem, e o restante revertido em favor do Município da circunscrição, local em que o objeto perdido foi encontrado. Não havendo a venda do bem em hasta pública aquele que encontrou a res poderá pedir sua adjudicação, ou seja, a propriedade do bem. No âmbito penal, quem encontrar coisa alheia perdida e não a restituir ou não entregar à autoridade competente, no prazo máximo de 15 dias, cometerá o crime tipificado no art. 169, II, do Código Penal Brasileiro, tendo como pena de detenção de 1 mês a 1 ano, ou multa. Para a consumação do crime, pouco importa aquele prazo estipulado, basta aquele que achou a coisa perdida comportar como se proprietário fosse, do objeto.
Eis o dispositivo: Art. 169 - Apropriar-se alguém de coisa alheia vinda ao seu poder por erro, caso fortuito ou força da natureza: Pena - detenção, de um mês a um ano, ou multa. Parágrafo único - Na mesma pena incorre: I – quem acha tesouro em prédio alheio e se apropria, no todo ou em parte, da quota a que tem direito o proprietário do prédio. II - quem acha coisa alheia perdida e dela se apropria, total ou parcialmente, deixando de restituí-la ao dono ou legítimo possuidor ou de entregá-la à autoridade competente, dentro no prazo de quinze dias.Mas, se a coisa alheia for de relevado valor econômico e não houver a restituição, não se preocupem, pois será difícil ter sua liberdade cerceada em decorrência do crime. Isso devido a Lei 9.099/95, que regulamenta o Juizado Especial Criminal. Por essa Lei, aquele que comete ilícito penal de menor potencial ofensivo, como o crime em análise, e se compromete a comparecer no Juizado Especial no dia e hora pré-fixados não poderá ser preso em flagrante e, muito menos, se exigir fiança, conforme prevê a norma do art. 69, parágrafo único. Além do mais, por tratar-se de ação penal pública incondicionada e, em obediência ao artigo 76 da Lei do Juizado Especial, o "autor do fato" poderá fazer acordo com o Estado, através do Ministério Público, o qual poderá propor a aplicação imediata de pena restritiva de direito ou multa. Ou seja, prestação de serviços à comunidade ou o pagamento de alimentos não perecíveis a alguma instituição de caridade.Com isso, ao encontrar coisa de relevante valor econômico, que não seja de sua propriedade, e não tendo notícia do verdadeiro dono, o mais prudente é levar o objeto à autoridade competente. A uma delegacia, por exemplo, para que sejam tomadas as devidas providências. Caso contrário, cometerá crime previsto no Código Penal Brasileiro.Sendo assim, a popular frase "achado não é roubado", ficaria corretamente se dita "achado, não encontrado o dono da coisa pelas vias legais, e adjudicado não é furtado", pois se é achado, entenda-se que não houve grave ameaça à pessoa, por isso, não se pode referir a roubo.Vale lembrar, no entanto, que a situação de se apropriar de coisa achada é bem diferente da mostrada na reportagem. Quando o repórter/comediante se identificou e afirmou que a coisa era dele, a coisa mudou inteiramente de figura.Neste caso, ocorreu furto. Este é o entendimento de Mirabete, demonstrado ao comentar o art. 169. Em vermelho, as palavras do autor (Código Penal Interpretado, 1999, p. 1087):O objeto material do crime é a coisa alheia perdida, ou seja, aquela cujo lugar onde se acha é ignorado pelo possuidor. Não se confunde com a coisa esquecida em algum lugar para onde o possuidor retorna, logo após, para apanhá-la. Há, no caso, furto, e não apropriação de coisa achada.

Eis algumas interessantes decisões sobre o tema:

Se a vítima apenas esqueceu, e não perdeu sua bolsa no local dos fatos, tanto que para lá retornou, logo após, para apanhá-la, não mais a encontrando, por haver o réu dela se apossado, o delito configurado é o de furto, e não o de apropriação de coisa achada (TJSP. RT 545/317). Comete o delito de furto, e não o de apropriação de coisa achada, o agente que se apodera da carteira que encontra em balcão de bar, tendo a possibilidade de entregá-la ao proprietário (TACRSP. RJDTACRM 25/171).

Assim, parece claro que o fato não se resume a um mero deslize ético. Tomar para si o que não é seu é fato ilícito. É crime.Mas não vá tão longe. Na próxima vez que achar algo que não é seu, coloque-se na posição de quem perdeu. Imagine que aquela coisa é sua. E faça o que você gostaria que outrem fizesse se achasse sua propriedade.

No final, tudo se resume à chamada regra de ouro:Tudo o que quereis que os homens vos façam, fazei-o vós a eles. Esta é a lei dos profetas (Mateus 7:12).

Um comentário:

Anônimo disse...

por getileza promova a devida citação no respectivo texto.
obrigado
Renato